Tou cá com um’Azia…
No seguimento de escândalos de cariz futebolístico, é comum que nos visitem a pedir algo para a azia. Quando a causa é puramente emocional, pouco há a fazer em termos de aconselhamento, além de prometer zelar por melhores golos no próximo jogo e ceder o amigo antiácido que pelo menos consola a barriga; mas por vezes a causa não é só de coração, e há algo mais que nos compete fazer.
“O que é a azia?”
É uma consequência daquilo que se chama “refluxo gastroesofágico”. Palavras caras para descrever o sumo do estômago a subir plo tubo acima.
Como todos nós sabemos, o nosso estômago produz ácido (nomeadamente, clorídrico), que é necessário para digerir tudo e mais alguma coisa graças à sua acidez. Uma vez que este órgão se trata de um autêntico reactor químico, necessita de ter as suas paredes bem revestidas contra toda essa acidez, para que o ácido não as desfaça também!
No entanto, a canalização que leva a comida até ao reactor já não está revestida por este muco protector.
É daqui que deriva a dor da azia. Eis que, no seguimento de o líquido no estômago estar forte demais, ou agitado demais, sobe pelo esófago acima, efetivamente digerindo (só um bocadinho!) as paredes do esófago. E isto é doloroso. Além disso, como já não existe mais nenhuma “válvula” entre a abertura do estômago e a boca, por vezes chegamos a sentir na boca um sabor azedo! Outra consequência engraçada (que não tem piada nenhuma, como já me disseram os utentes a quem eu tentei explicar isto…ups) é que os vapores provenientes do ácido no esófago são suficientes para irritar as cordas vocais (na laringe, que está ali logo ao lado), que se inflamam e fazem tosse e a voz rouca. Mais um facto interessante: muitas vezes a dor ocorre mesmo atrás do osso esterno, e por isso pode parecer que está o coração a arder (daí o termo em inglês para azia ser “heartburn”).
“Mas pra que é que me serve saber isso tudo, se basta saber o que tomar quando acontece?!”
Ora serve porque de acordo com a causa da azia, a sua duração no tempo e a sua intensidade, as medidas a tomar podem variar um pouco. No entanto, independentemente das variações, existem algumas medidas farmacológicas e não-farmacológicas que ajudam a tratar o problema, por isso começamos pela anamnese (outra palavra cara que quer dizer extorquir informação do utente até que ele nos diga as asneiras todas que faz)
“Só bebo uns copitos antes de me deitar…”
Asneira – o álcool relaxa a válvula entre o estômago e o esófago, e faz com que o ácido suba com mais facilidade.
“Gosto muito daquelas pataniscas, mas nunca como muitas…”
Mentira. E asneira. – Comidas com muita gordura fazem com que o estômago se esvazie mais lentamente, o que aumenta a probabilidade de refluxo.
“Eu sei que quando como X (chocolate, pimenta, laranjas ou outra coisa qualquer), fico com isto…”
*pokerface* Então evite isso. Pode comer de vez em quando, mas previna-se com um antiácido em seguida.
“Isto dá-me principalmente quando me vou deitar depois de jantar.”
Asneira. – O que é que acontece a um copo cheio de ácido quando o deitamos? Pois. Um jantar mais levezinho, esperar duas horas antes de ir dormir e colocar almofadas de forma a subir o torso inteiro (e não só a cabeça, porque não é aí que está o estômago da maior parte das pessoas que não são o Sr. Zé) são medidas que ajudam a diminuir a intensidade da azia nocturna.
Estas são as medidas que podem ser tomadas por toda a gente quando têm azia. Existem algumas situações mais particulares que só podem ser discutidas caso a caso: o exercício físico, a medicação e a obesidade são alguns factores que podem também originar episódios do género, mas têm de ser geridos individualmente.
“Já tou farto de o ouvir falar home! Dê-me o raio do medicamento!”
Ora bem, então existem essencialmente três classes de medicamentos: os antiácidos (AA); os antagonistas H2 (AH2); e os inibidores da bomba de protões (IBP).
– Os AA são aqueles a que qualquer pessoa devia recorrer inicialmente. São sais de metais alcalinos, que funcionam neutralizando o ácido do estômago, tal e qual uma reação química que se dá no 8º ano.
– Os AH2 impedem que o estômago receba a “ordem hormonal” para produzir mais ácido. Costumam ser mais eficazes do que o antiácido e ter uma duração de acção mais prolongada. No entanto, têm também vários efeitos secundários e muitas interações com outros medicamentos. Têm sido menos usados ultimamente por causa dos…
– IBP que inibem a produção de ácido pelo estômago directamente (a bomba de protões é como se fosse uma bomba de ácido). Estes medicamentos são bastante potentes e bastante seguros em termos de interacções e efeitos secundá…
“Oh pera lá! Atão eu não ouvi na televisão no outro dia que eles tavam a mandar tirar isso tud dos oméprazóis e nã-sei-quê?”
Já lá ia chegar. Estes IBP são aqueles fármacos, como o omeprazol (e outros com uma terminação semelhante), que há pouco tempo tiveram uma reavaliação do seu uso. Ou seja, descobriu-se que, apesar de serem muito seguros e com poucos efeitos secundários, a longo prazo esses efeitos acumulam-se e podem vir a gerar algumas complicações que são indesejadas e evitáveis se mantivermos um uso mais regrado destes IBPs.
“Em que é que ficamos?”
Na mesma situação de sempre: os medicamentos existem para serem tomados com ponderação. A azia é uma situação habitualmente tratável na farmácia com um antiácido, um AH2 ou um IBP de venda livre, mas faz todo o sentido investigar causas possíveis que possam ser remediadas com medidas como as que falávamos há pouco.
“E o que é que me vai aconselhar?”
Para isso deixe de ver o jogo que isso faz-lhe mal ao estômago e consulte com o seu farmacêutico 😉
IMPORTANTE: A azia pode ser um sintoma de uma situação mais grave. Se estiver a ocorrer muito frequentemente (mais de duas ou três vezes por semana, com intensidade considerável), então convém consultar um médico para que possa ser investigada a causa.
Nota para o leitor: Este texto tem um cariz humorístico e naturalmente que não pretende simular um verdadeiro atendimento. A empatia e uma avaliação cuidada do caso (em factores humanos e científicos) é que tem de reinar numa situação real, ao invés do sarcasmo e das piadas fáceis.
Texto escrito pelo João.