Não consigo lidar com o meu esquecimento
Hoje levantei-me antes do despertador tocar, engoli o pequeno-almoço e deixei os miúdos na escola.
Queria chegar à farmácia antes de todos para despachar a pilha de papéis que há já alguns dias “ cria raízes” na secretária. Estava a meter a chave a chave à porta quando vi o Sr. João a aproximar-se. Trazia os jornais enrolados debaixo do braço e na mão um saco de pano aos quadrados com a palavra pão bordada. Surpreendida por vê-lo tão cedo disse-lhe:
-Bom dia, veio ajudar-me a abrir a farmácia?
Sorriu e sentou-se à espera enquanto eu ligava as luzes da cruz e vestia a bata. Pus meia dúzia de canetas no bolso e prendi o cabelo com o elástico da Mada que tinha no pulso.
A papelada teria de esperar.
Como estávamos apenas os dois talvez conseguisse perceber a razão pela qual veio à farmácia antes das nove sem a sua Celeste.
Perguntou-me pelos miúdos.
-Os miúdos estão bem, a crescer depressa demais para o coração da mãe
-E o seu mais velho já está com quantos anos?
-Fez vinte e três este ano
-Já? Os anos passam mas continua sempre com esse ar de miúda
-Conheci a sua mãe quando estava grávida do seu irmão. A doutora era a menina com a mesma idade do meu filho mais velho
-Vivo neste bairro há mais de quarenta anos!
-Recordo-me dos meninos a correr para a carrinha dos gelados assim que se ouvia a música a tocar na praceta, lembra-se?
-Ainda tenho a cantilena gravada no coração e o sabor doce dos gelados na boca.
As palavras cheias de memórias de uma infância plena de brincadeiras de rua aqueceram-me o peito
Tira um papel amachucado do bolso da camisa e olha-me fixamente nos olhos como se estivesse a ganhar balanço para me dizer:
-A minha Celeste insistiu para eu trazer a lista da farmácia
Ao ver sua expressão esmorecida percebi o significado do pedaço de papel, era como tivesse aceite baixar os braços.
Cabisbaixo com os olhos postos no balcão num tom baixinho, como se na farmácia estivesse mais alguém além de nós os dois,confidenciou:
-Estou velho, esquecido, desorientado mas não estou maluco!
A Dona Celeste já me tinha contado que decidiram em família, apesar de a situação ser difícil, que o Sr. João tinha o direito de saber a verdade acerca do seu “esquecimento”. Pediram ao neurologista e à psicóloga para lhe falarem sobre a doença sempre reforçando o apoio incondicional da família.
Procurei reconfortá-lo:
-Sr. João não gosto de o ver tão triste, não é o único a entrar por aquela porta com uma lista no bolso. Vamos arrebitar! Não está sozinho, Tem o apoio da família e principalmente o amor da sua Celeste.
E, claro, pode sempre que vir ajudar a abrir a farmácia, mas atenção acampar à porta só é permitido em dias de concerto!”
Soltou uma gargalhada ruidosa, pegou nos sacos e despediu-se com um abraço sentido.
Sentei-me à frente da papelada com um aperto no peito e fui assaltada por pensamentos.
E se fosse comigo?
Queria saber a verdade sobre a doença para preparar a minha vida apesar de saber que ficaria aprisionada numa vida sem memória da qual as pessoas que amo não farão parte dela.
Para ler aqui sobre a doença de de Alzheimer