MAIS TESTA… MENOS TESTOSTERONA!

Tarde de fofoca

Numa bela tarde daquelas menos movimentadas, entra Dona Engrácia pela farmácia, claramente em dia de cortar na casaca.

“Oh João, já viste agora aquele rapazito das notícias que andava naquelas injecções dos músculos e agora já estão a pensar se lhe vão tirar a perna?”

“Oh boy…” Pois eu que passei as últimas semanas a evitar propositadamente as notícias relativas a estes sensacionalismos dou por mim arrastado para uma conversa sobre a qual não queria ter de ter uma opinião. Escorrego na fútil fofoca e rapidamente dou por mim embrenhado numa conversa que faz tão mal e sabe tão bem.

“A gente…” – começo eu, referindo-me a nós profissionais de saúde e a educadores e promotores da saúde pública – “… passa o tempo todo a dizer ‘doping é mau’ de várias e diversas maneiras, para ver se pelo menos uma delas ressoa com as pessoas, mas depois quando há um caso destes parece que é novidade e fica meio mundo chocado com um resultado que era mais ou menos expectável…”

“Mas não foi nada disso do doping! Ele não era nenhum atleta, fazia as injecções só para ficar mais bonito nas fotografias.”

“Eu avisei que não tenho andado a prestar atenção às notícias Dona Engrácia.”

Ai os problemas modernos do paradigma estético em que vivemos… Vale a pena? Será isso mais ou menos justificado do que o doping desportivo? Estou prestes a pôr de parte os dilemas éticos quando ela me interpela de outra forma.

“Mas olha lá, isto é sempre assim? Uma pessoa começa a injectar-se com testosterona e aquilo faz uma infecção? E se eu quisesse agora assim aumentar aqui as mamocas, vendiam-me uma hormona qualquer e davam-me a injecção?”

“Acha!?”

“Eu sei lá! Para ele conseguir arranjar a testosterona é porque alguém lha deu, não é? E como é um medicamento…”

“… sujeito a receita médica…” – completo eu. Depois tento meter alguma ordem na conversa – “Mas então vamos lá por partes:

1º – Qual é o problema da testosterona? 2º – Como é que ele arranjou tal coisa? 3º – Como é que apareceu a infecção?”

“Tens aí uma caneta e um papelinho? Eu quero apontar isto para depois poder dar a ensaboadela ali ao pessoal no café que ‘tava só a dizer disparates.”

“Então é o seguinte: a testosterona é uma hormona importante, principalmente no desenvolvimento das características sexuais secundárias, mas os seus efeitos são sentidos em muitas partes do corpo. Um desses efeitos é o desenvolvimento de alguma musculatura. No entanto, – e isto é importante – está longe de ser o método mais eficaz para obter aquele corpinho tonificado. Isto ainda sem falar nos riscos.

“Mas, e falando nos riscos?”

“É perigoso. Como a hormona funciona em muitos sítios e faz muitas coisas, há muitas coisas que podem correr mal! Uma das mais perigosas é falência renal…”

“Tu não me digas uma coisa dessas que eu vou já ali esterilizar o meu sobrinho!”

“Não, não, o problema aqui não é propriamente da testosterona em si, e quando esta está dentro dos níveis certos, não tem qualquer problema.

O problema vem mesmo do aumento súbito dos músculos, que gera muito ‘lixo’ que os rins têm de filtrar… Ora se for mesmo muito lixo, a nossa ‘ETAR’ entope, e temos de recorrer ao outsourcing de uma maquineta de hemodiálise. Isto li eu no Público no outro dia.”

“Está certo, já percebi que meter testosterona não é propriamente boa ideia. Então para que é que vocês vendem disso aqui?”

“Se há um medicamento, é porque há uma doença ou condição que o justifica… Por exemplo, tal como há tiróides que não produzem tiroxina (hipotiroidismo) ou pâncreas que não produzem insulina (diabetes), há também tintins que não produzem testosterona. Esta e outras situações delicadas (transgénero, andropausa, cancro da mama) é que requerem a dita ‘terapêutica de substituição hormonal’.

O que nos leva à 2ª questão: Se ele não tinha nenhum destes problemas, como é que arranjou a testosterona?”

“Alguém lha vendeu?”

“Pois. Um médico não lha iria prescrever, penso eu. E sem a receita um farmacêutico não lha iria dispensar, nem mesmo em situações de emergência (até porque não é medicamento que esteja sujeito a grandes emergências)…”

“Deve ter comprado na internet.”

“Pois, talvez. Ou talvez um amigo lha tenha dado, e tenha sido ele a comprar na internet. Calculo que haja disso aí a circular em alguns sítios. Mas é muito, muito má ideia. Não há qualquer tipo de garantia de controlo da qualidade dos produtos. Até pode vir na embalagem certinha, roubada em primeira-mão do armazém da farmacêutica, mas basta que tenha passado 2 dias fechado no carro a torrar ao sol, para estar tudo estragado. E depois quem é que se responsabiliza?”

“Então tu achas que foi daí que ele apanhou a infecção?”

“É uma possibilidade: um produto mal acondicionado, ou contaminado logo à partida, que depois é injectado diretamente no músculo, no interior do corpo. Mas há outra hipótese que está relacionada com a administração da injecção.”

“Já estamos na 3ª parte?”

“Já sim. Dar uma injecção em segurança implica uma data de pequenos pormenores que a gente nem se apercebe quando estamos à espera da pica e a evitar olhar para a agulha para não desmaiar.

Um desses cuidados é com a higiene e desinfecção do procedimento. Uma bacteriazinha que esteja feliz em cima da pele por mim está à vontade, mas se apanhar boleia numa agulha pode causar problemas muito sérios. Para além de desinfectar a zona e usar material esterilizado, há outros cuidados a ter com as injecções, e por isso tudo é que há gente que tira cursos específicos para fazer isso como deve ser.”

“Então tu achas que foi daí que veio a infecção? De uma bactéria que já podia até estar na pele dele?”

“Não sei. Sei que de pouco serve estar a opinar, porque a única moral a tirar da história é mais velhinha que o Aristóteles: temos médicos e enfermeiros e farmacêuticos e outros profissionais de saúde para lhes podermos confiar a nossa saúde.

Para que é que nos servem, se depois passamos o tempo todo a ignorar os seus conselhos?”

Texto escrito pelo João.

 

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