HEMORRÓIDAS “ON THE ROCKS”

Está João distraído a arrumar o balcão eis senão quando vem Dona Zita, pé de veludo ante pé de veludo (qual artista marcial treinada algures por monges silenciosos em mosteiro remoto) e profere, em tom comparável a um suspiro de um pinheiro no alentejo:

Precisava de um creme para as hemorróidas.

Surpreendido e agradecido por a carreira da Dona Zita não incluir as artes do assassinato, procedo a dar-lhe o devido cumprimento (pois nem a tinha visto até ali) e a inclinar-me sobre o balcão para ouvir – agora já membro aceite e integrado na sua célula-espia – o devido problema. Em jeito de contra-senha proponho a solução e, conversa feita, malas trocadas, “tu não me viste, não falaste comigo, esta reunião nunca aconteceu”.

Mas ocorreu-me que este encontro de espiões era a modos que desnecessário, e, apesar de extremamente engraçado de descrever, tratou-se certamente de um momento de tensão e stress para a Dona Zita. E qual não será o grau de desconforto físico em que ela tem de estar para enfrentar este grau de desconforto psicológico provocado apenas pela vergonha?

A minha abordagem perante muitos assuntos é sempre tentar perceber mais acerca disso. Quando sabemos aquilo com que estamos a lidar, particularmente a um nível científico, torna-se mais natural e mais fácil de aceitar e falar do assunto sem vergonha. Por isso vamos lá:

Hemorróidas refere-se a um complexo de vasos sanguíneos que existem no recto e no ânus. É só quando esses vasos ficam inflamados que é considerado um problema. Esta inflamação pode ser provocada por inúmeras situações, algumas tão simples e não-vergonhosas como “estar sentado”, outras igualmente simples e importantes como a obstipação e a predisposição genética (ou seja, se existe historial disso na família).

A inflamação hemorroidal está disponível em múltiplos “modelos e cores”, nomeadamente interna ou externa, com ou sem sangue, com ou sem dor ou prurido, com ou sem prolapso. De acordo com as diferentes combinações e gravidade destes factores, temos também diagnósticos e tratamentos ligeiramente diferentes.

Antes de mais, começam-se sempre pelas medidas que não precisam de medicamentos: fibra na dieta, emagrecimento, hidratação, evitar alguns alimentos (picantes e enchidos são alguns dos exemplos mais habituais como causadores do problema), e evitar tempo e esforço em excesso na sanita.

Quando passamos aos medicamentos, geralmente seguem-se 3 abordagens: venotrópicos; cicatrizantes, anestésicos e anti-inflamatórios; e laxantes. Agora que já disse as palavras caras, posso passar a explicar:

problema de fragilidade dos vasos? Venotrópico.

Problema de dor, inflamação e sangramento? Cremes e pomadas cicatrizantes, anestésicos e anti-inflamatórios.

Neste tópico, podemos considerar o gelo ou compressas frias como um bom anti-inflamatório caseiro, mas tem de ser aplicado com MUITO cuidado nesta zona mais sensível.

Para terminar, problema de obstipação? Laxante. Existem ainda procedimentos cirúrgicos mais ou menos invasivos que apresentam uma solução habitualmente mais duradoura.

(Não-tão-pequeno parêntesis para explicar a questão do sangue: sangue nas fezes pode ser um assunto sério que merece investigação médica imediata. O sangue proveniente das hemorróidas é no entanto, habitualmente inofensivo. A melhor forma de determinar se é perigoso, é identificar se é fresco e bem vermelho, sujando o papel de limpeza: se assim for, e estiver associado aos outros sintomas de hemorroidal, então em princípio será proveniente desse local.

De qualquer forma, em casos de grandes perdas de sangue, ou dificuldade em parar a hemorragia, deverá sempre consultar o médico.

Puxa… demorou mais do que pensava a explicação. Não admira que os meus atendimentos sejam sempre tão demorados! De qualquer forma, agora queria abordar o assunto que levantei no início do texto: a vergonha e o estigma associado.

Ponto 1: Piadas sobre hemorróidas têm piada. Apesar disso, quase nunca são um ataque à nossa pessoa, mas antes uma espécie de comentário humorístico a uma das situações desconfortáveis que é comum à nossa vivência… O que me leva ao …

Ponto 2: Estima-se que pelo 50% da população tenha tido uma crise de hemorroidal pelo menos uma vez na vida, e em qualquer altura 5% da população tem o problema activo. Isto não são dados portugueses, mas tendo em conta a nossa cultura de enchidos, não me admirava que fosse ainda maior por estes lados.

Ora gostaria de pegar neste ponto 2. Tendo em conta que o nosso número de amigos chega facilmente aos 20, isso significa que qualquer pessoa em qualquer momento (nomeadamente as pessoas que se encontram na farmácia quando está a tentar passar mensagens codificadas) deve conhecer pelo menos 1 pessoa que está neste momento a sofrer de hemorroidal. Melhor, muito provavelmente essa pessoa já teve ao longo da sua vida ou pelo menos terá no futuro a benção divina da inflamação anal. E sabe como é incómodo ou doloroso.

Certamente que não é um assunto que as boas maneiras permitam que se pregue aos sete ventos, assim como não o é, a vida privada de qualquer um. No entanto, quando tratamos com locais e profissionais de saúde, temos de ter sempre em conta que por um lado, eles estão centrados no problema, e não em julgamentos morais ou humorísticos e, por outro lado, também eles são pessoas e sabem o que é sofrer de algumas das mais comuns patologias: afinal de contas, foi mesmo por isso que muitos quiseram saber mais sobre elas!

Tudo contra os estigmas e preconceitos, para que o problema possa ser enfrentado de forma directa e eficaz. #EuJáSofri.

Texto escrito pelo João.

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